terça-feira, 10 de abril de 2012

O cabo de guerra das florestas


 

O novo Código Florestal tem o desafio de conciliar a preservação da natureza com o desenvolvimento do agronegócio. Mas o embate entre os ambientalistas e os produtores rurais está longe do fim




Um dos mais importantes temas atualmente em tramitação no Congresso Nacional, o novo Código Florestal pretende resolver uma questão crucial: conciliar a proteção do meio ambiente com o desenvolvimento da agropecuária. Isso não deveria ser tão complicado no Brasil, um país que possui 520 milhões de hectares de áreas preservadas, o correspondente a 61% de seu território, ao mesmo tempo que se tornou uma potência global do agronegócio ocupando apenas 28% da área com a atividade. No entanto, mais de 90% dos 5,2 milhões de produtores brasileiros estão atualmente fora da lei, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). De algum modo, eles não cumprem o código em vigor, estabelecido em 1965 e, desde então, modificado por vários decretos, portarias e medidas provisórias. A situação chegou a esse ponto devido ao descaso de produtores, à dificuldade de cumprir determinações pouco razoáveis e à incapacidade do Estado de realizar a fiscalização devida. Por anos o governo prorrogou por decreto o prazo para a adequação às normas, até que a revisão da legislação se impôs como prioridade. "A atualização do código trará segurança jurídica aos produtores rurais", diz a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidente da CNA.

Mais que dar segurança a agricultores e pecuaristas, a qualidade da lei produzida e a capacidade de adequação do setor ao novo marco legal a partir de 2012 dirão ao mundo se o Brasil possui, de fato, um agronegócio sustentável e mecanismos modernos para gerir seu patrimônio natural. O ponto de partida dos grupos que buscam influenciar o novo código é a legislação atual. Sobre ela, uns dizem tratar-se de um arcabouço ultrapassado e inaplicável, uma ameaça não apenas ao crescimento da produção mas também à sua manutenção nos patamares atuais, além de ineficaz para proteger os recursos naturais. Para outros, entretanto, trata-se de uma das legislações ambientais mais modernas do mundo, que foi simplesmente ignorada pelo avanço da agropecuária - e agora, em vez de se buscar cumpri-la, optou-se por afrouxar as regras e apagar os erros do passado. Assim se delineou uma polarização feroz entre produtores rurais e ambientalistas.

Posto nesses termos, o primeiro round foi vencido pelos produtores. O projeto de lei do deputado e atual ministro do Esporte Aldo Rebelo (PCdoB-SP), aprovado com folga pela Câmara dos Deputados em maio, flexibilizou as regras para a ocupação de áreas de proteção e reservas florestais nas propriedades rurais, entre outras mudanças polêmicas que dão margem a interpretações contraditórias. "O texto aprovado atende à demanda dos produtores, principalmente os pequenos, ao mesmo tempo que mantém os instrumentos de conservação do código atual", diz Rodrigo Lima, gerente-geral do Icone, instituto especializado na análise do agronegócio. Para Lima, a maior virtude do código aprovado na Câmara é a possibilidade de adequar o ordenamento jurídico à realidade do país - algo que seria hoje impossível, como sugere o descumprimento da lei em larga escala. "Aumentar as exigências sem considerar aspectos socioeconômicos dos produtores, como tem sido feito nos últimos anos, não trouxe resultados práticos para a conservação", afirma Lima.

Agora está em curso o segundo round do embate. O Senado se debruça sobre o texto aprovado na Câmara, revisando seu conteúdo em comissões e analisando novas propostas. Nessa etapa, espera-se que sejam incorporadas algumas demandas dos ambientalistas.
"Ainda dá para salvar o código no Senado, mas com o coração partido pelas perdas irreversíveis. Perdemos a oportunidade de criar uma lei inovadora e moderna", diz Miriam Prochnow, da ONG catarinense Apremavi, uma das coor­denadoras do Comitê em Defesa das Flores­tas, frente que reúne a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e diversas ONGs. Os ambientalistas ­veem no texto da Câmara um enorme retrocesso, pois, entre outras coisas, ele admite a consolidação de atividades agropecuárias em áreas de proteção permanente, as APPs ­¿ terrenos sensíveis, como margens de rios, encostas íngremes e topos de morros -, beneficiando quem descumpriu a lei e punindo, portanto, quem cumpriu. O texto também isenta um grande número de propriedades da recuperação da reserva legal, área destinada à manutenção de vegetação natural e que varia de acordo com o bioma - ela deve ocupar 80% das propriedades na Amazônia, 35% no cerrado e 20% em outros biomas. O novo texto abre, por exemplo, a possibilidade de compensar reserva legal em outra área, ainda que distante, desde que no mesmo bioma - por exemplo, o dono de uma fazenda em Goiás poderá arrendar uma área no sul do Maranhão, também no cerrado, e mantê-la como reserva.

O Senado deve colocar o texto do novo código em votação no plenário em novembro. Depois, os deputados voltam a analisar o texto. Em seguida, o código vai para a sanção da presidente Dilma Rousseff, o que pode acontecer até o fim do ano. Até o fechamento desta edição, a expectativa era que o Senado ajustasse alguns pontos do texto aprovado na Câmara, como a possibilidade aberta à consolidação de qualquer atividade agropecuária em APPs, e incluísse aspectos relativos ao ordenamento urbano, assunto praticamente ignorado pela Câmara. "Também precisamos adotar mecanismos econômicos para premiar quem cumpre a lei e para incentivar a recuperação e a conservação", diz Raul do Valle, do Instituto Socioambiental. Ele se refere ao conceito de pagamento por serviços ambientais, cujo princípio é o de que a natureza presta serviços fundamentais, como regulação do clima e retenção de carbono, e quem a protege deve receber por isso. Essa é uma agenda positiva, que converge interesses de ambientalistas e produtores rurais.

Ainda assim, a aprovação do código não significará o fim do embate. "Para sairmos dessa guerra, todo mundo tem de ganhar, senão todos saem perdendo", diz Lima, do Icone. Se o texto não for equilibrado a ponto de atender aos anseios dos interessados, poderá haver uma enxurrada de ações judiciais que atravancarão o processo. Se tudo correr bem, começa em 2012 o desafio de implantação da nova legislação. O poder público precisará se estruturar para criar um cadastro ambiental que forneça informações fidedignas sobre a situação de APPs e reservas legais em cada propriedade, peça-chave para uma gestão eficiente do espaço rural. Os governos federal e estaduais deverão estabelecer regras de programas de regularização ambiental para que as propriedades possam aderir e se enquadrar na nova legislação, e fontes de recursos terão de ser criadas para o pagamento por serviços ambientais. Já os produtores deverão realizar as mudanças necessárias à regularização das propriedades. "A aprovação do código é só o primeiro passo para o ordenamento do setor", diz Lima.

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