Foi-se o tempo em que uma bela salada era receita de preservação da saúde. O governo alertou, com base nos resultados de estudos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgados em março, que alguns alimentos comuns na mesa dos brasileiros, como pimentão, cenoura, morango e uva, apresentam altos índices de resíduos de agrotóxicos. É o próprio governo quem também anuncia, ainda pela Anvisa, órgão do Ministério da Saúde, e pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), que estão em fase de finalização estudos que poderão levar à proibição de algumas substâncias químicas comuns nas lavouras do país.
Contraditoriamente, o mesmo MMA, por intermédio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), está discutindo a possibilidade de autorizar a pesquisa, o registro, o comércio e a utilização de agrotóxicos em ambientes hídricos. Ou seja, trata-se da permissão do uso de venenos no combate a plantas aquáticas e mexilhões nos mananciais onde se busca água para as casas de milhões de brasileiros. "Será péssimo se isso acontecer", diz Marcelo Pompêo, do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). "Mesmo quando dissolvidos, alguns agrotóxicos permanecem ativos no ambiente por mais de 20 dias, o que pode prejudicar a qualidade da água destinada ao consumo humano", alerta o pesquisador, doutor em ciências da engenharia ambiental.
Como se trata de veneno, o agrotóxico não vai matar apenas as plantas aquáticas, mas destruir a maioria dos organismos vivos dos mananciais. A ideia de combater plantas aquáticas e mexilhões dessa maneira, na opinião de Pompêo, é típica de técnicos que buscam soluções fáceis para situações complexas, sem avaliar possíveis efeitos colaterais. Seres como plantas aquáticas, algas e mexilhões tornam-se problema quando se reproduzem excessivamente em ambientes fartos em nutrientes, que se devem à falta de tratamento do esgoto lançado nesses locais. "As medidas de saneamento ambiental são caras, e a busca pelo lucro, qualquer que seja o custo humano, é a prioridade de muitos", diz ele.
A Anvisa está de olho nessa resolução, ainda não publicada, admite Luiz Claudio Meirelles, gerente-geral de Toxicologia do órgão. Como aconteceu quando departamentos de parques e jardins de grandes cidades pretendiam pulverizar praças públicas para combater o crescimento de capim, a Anvisa pode interferir para evitar a concretização da ideia. "Contaminar água com agrotóxico é uma temeridade", afirma Meirelles.
Monitoramento
Os agrotóxicos chegaram ao Brasil pelos estados do sul, junto com a cultura da soja, do trigo e do arroz. Naquela época – anos 1970 –, a utilização desses produtos era obrigatória para quem quisesse obter crédito rural do governo. Os agricultores, então, preparavam "caldas" com as quais pulverizavam as plantações usando as próprias mãos para misturar o veneno em pó com água, o que causou a morte de muita gente.
Hoje, com exceção de uma minoria que cultiva alimentos orgânicos, todos os produtores agrícolas usam pesticidas para combater pragas e doenças. Por essa razão, a Anvisa desenvolve diversas ações para combater a contaminação por agrotóxicos, as quais têm apresentado resultados positivos. Por exemplo, as listas de alimentos contaminados compiladas pelo órgão, como a que foi divulgada este ano na 7ª edição do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), estão baseadas na coleta e na análise de produtos alimentícios in natura realizadas em 26 estados. Periodicamente, é feita também a avaliação de 170 ingredientes ativos presentes na formulação de pesticidas e adubos.
Os grandes centros de abastecimento do setor varejista têm monitorado a recepção de frutas e legumes e já é possível rastrear a origem dos produtos em 70% do território nacional. Em outras palavras, pode-se saber de onde vieram aqueles que registrem altos índices de resíduos tóxicos. "Em algum momento, os supermercados também vão implantar programas de ação para verificar onde ocorre a contaminação e alertar os órgãos de agricultura", acredita Meirelles. "A responsabilidade é de todos e isso está sendo compreendido." O gerente-geral da Anvisa espera que essas ações evitem um retrocesso das conquistas obtidas, que tornaram os alimentos produzidos no país melhores do que eram nos anos 1970.
Combustível da agroindústria
O Brasil é um dos países campeões do mundo no consumo de agrotóxicos. Segundo informações da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e Suas Especialidades (Abifina), o faturamento do segmento agroquímico apresentou expressiva evolução de 2002 a 2004, passando de R$ 1,2 bilhão a R$ 4,4 bilhões nesse período. A entidade não fornece dados atuais. Também estão desatualizados os números relacionados à contaminação humana aguda por agrotóxicos, que atinge sobretudo os trabalhadores do campo. São de 2003 os últimos registros do Sistema Nacional de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox), órgão vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Naquele ano, teria havido 14.064 ocorrências em todo o Brasil, das quais 6.769 na região sudeste. Porém, Meirelles, da Anvisa, chama a atenção para o elevado índice de subnotificação: "Estimamos que, para cada caso conhecido, 50 não são informados".
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 3% dos trabalhadores expostos a agrotóxicos sofrem algum tipo de intoxicação. A OMS estimou, em 1990, que deveriam ocorrer no mundo, anualmente, cerca de 3 milhões de casos agudos, mais de 700 mil de efeitos adversos crônicos, como distúrbios neurológicos, além de cerca de 75 mil de câncer por exposição e 220 mil mortes.
Na verdade, ninguém sabe exatamente quantas são as vítimas por exposição crônica, quando é baixo, mas contínuo, o contato com o veneno. Armando Meyer, pesquisador da Fiocruz em Epidemiologia do Câncer, analisa há quase uma década a relação entre a
doença e a contaminação por agrotóxicos. Segundo ele, a literatura internacional apresenta muitos estudos que vinculam problemas de saúde aos pesticidas. Todos os experimentos para confirmar sua relação direta com o câncer, contudo, foram feitos com animais. No caso de seres humanos, como são muitos os fatores capazes de desencadear a doença, ainda não foi estabelecido um vínculo que isolasse todas as outras causas potenciais, embora sejam fortes as evidências de associação.
Em sua dissertação de mestrado, de 2003, Meyer comparou trabalhadores agrícolas do sexo masculino com a população urbana da região serrana do Rio de Janeiro, durante o período entre 1979 e 1998. "Mostramos que, embora o agricultor morra menos de câncer que a população em geral, alguns cânceres específicos, como o de pele, estômago e esôfago, atingem essas pessoas mais intensamente", diz ele. "Os resultados, portanto, sugerem que a exposição aos pesticidas, durante os anos 1980, pode ser associada ao surgimento de determinados cânceres observados uma década mais tarde." Os estudos de Meyer continuam, ampliados para outras populações.
Pesquisa feita nos Estados Unidos pelos cientistas Youn K. Shim, Steven P. Mlynarek e Edwin van Wijngaarden, publicada neste ano na revista Environmental Health Perspectives, mostra que o risco de tumor cerebral em crianças foi significativamente menor quando os pais se lavavam imediatamente após o uso de pesticida em ambiente doméstico ou no trabalho, ou quando utilizavam roupas especiais de proteção. Na opinião do médico Angelo Zanaga Trape, professor de saúde ambiental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a chave do segredo é a prevenção, pois, se houver uso inadequado dos produtos, a contaminação pode se tornar grave problema de saúde pública.
Mau uso e educação
Trape critica o fato de o país ainda não ter desenvolvido uma política eficiente para garantir a saúde e a educação dos trabalhadores rurais. "Essa é uma população esquecida", diz ele. As faculdades de medicina também não incluem em seus currículos a disciplina de toxicologia, que ensinaria a diagnosticar envenenamentos e garantiria a adequada orientação de pacientes da zona rural que apresentassem quadros de intoxicação. As ações que existem para prevenir contaminações são pontuais e esporádicas, como as realizadas pelos técnicos da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo.
Entre os programas da Cati está o treinamento de trabalhadores em relação à manipulação e ao uso de agrotóxicos. Há também uma oficina exemplar desenvolvida pela enfermeira e pedagoga Juscelina Abraão Correia e pelo médico veterinário José Antonio Adami, de Atibaia (SP). Esse trabalho partiu da observação, no início desta década, do número de óbitos causados por pesticidas na zona rural daquela cidade, também conhecida como capital do morango. Dispostos a educar os trabalhadores rurais do município, eles produziram uma cartilha no formato de história em quadrinhos, que pode ser compreendida até mesmo por analfabetos e ensina a usar adequadamente pesticidas e adubos. "A cartilha foi adotada pelo governo do estado e agora temos 50 mil exemplares para distribuir", diz Juscelina, que, com Adami, trabalha em parceria com o hospital da Unicamp.
Nesse hospital, Trape coordena, no setor de toxicologia, a análise das amostras de sangue de trabalhadores rurais, colhidas aleatoriamente em 15 municípios hortifrutigranjeiros da região metropolitana de Campinas. O exame ajuda a verificar a ação residual de organofosforados e carbonatos. Se constatada a contaminação, os trabalhadores são conduzidos a outra série de exames. Em conjunto com as oficinas educativas, os resultados têm sido promissores. "De dezembro de 2006 a dezembro de 2008, a Unicamp não registrou nenhuma internação por intoxicação de origem ocupacional", diz Trape.
Os problemas de saúde causados pelo trabalho com pesticidas não se restringem aos que manipulam a terra. Os pilotos de aviação agrícola estão entre os profissionais afetados, sobretudo por ficar continuamente expostos às nuvens de fumaça tóxica, acomodar-se em pequenas cabines pouco ventiladas e raramente utilizar equipamento de proteção individual. Os resultados de uma pesquisa sobre o assunto, feita pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) em conjunto com a Fiocruz, são preocupantes. Também não é incomum a população de pequenas cidades da região centro-oeste, com economia centrada na produção de gigantescas fazendas de soja e de milho, ser atingida por nuvens de venenos trazidas pelos ventos, fenômeno chamado de pulverização por deriva.
Destinação das embalagens
Apesar de todos esses problemas, Fernando Altino Rodrigues, diretor do Instituto de Química da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ressalta que a situação brasileira melhorou muito se observada a partir de uma perspectiva histórica. A consciência dos efeitos danosos dos agrotóxicos sobre a saúde humana teve impulso com a publicação, em 1962, do livro Primavera Silenciosa (Silent Spring), de Rachel Carson, que narrava os efeitos colaterais dos agrotóxicos, tema inédito até então. Na obra, a autora destaca que o controle de pragas e doenças das plantas com pesticidas interfere nas defesas naturais do próprio ambiente. O alvo de Rachel era, sobretudo, o uso indiscriminado do diclorodifeniltricloretano (DDT). As reações às denúncias foram tão fortes que fizeram com que algumas das substâncias listadas acabassem proibidas ou sofressem restrições. Desde então a luta ganhou força.
Segundo Altino Rodrigues, nas décadas de 1970 e 80 a situação brasileira era incomparavelmente pior que hoje, sobretudo por dois fatores: a mínima consciência das empresas fabricantes e a desinformação quase total dos usuários sobre os efeitos nefastos dos produtos. "A reversão desse cenário começou com a conscientização ambiental", diz ele. "As empresas perceberam quanto era ruim para seu próprio negócio manter-se indiferentes às cobranças sociais." Foram desenvolvidas, então, logísticas para a destinação das embalagens desses produtos, além de metodologias e parâmetros para descontaminação dos frascos.
Altino Rodrigues destaca a ação do Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev), mantido pela indústria fabricante de defensivos agrícolas. A entidade, criada depois que a lei federal 9.974/2000 e o decreto federal 4.074/2002 passaram a atribuir a cada elo da cadeia – agricultores, fabricantes, canais de distribuição e poder público – a responsabilidade pelo recolhimento das embalagens, reúne atualmente 76 empresas e sete entidades de classe do setor agrícola. Mais de 2,9 mil distribuidores e cooperativas participam de seus programas, em 25 estados.
Nos primeiros quatro meses deste ano, o Inpev recolheu em todo o país e encaminhou para destinos ambientalmente corretos – reciclagem ou incineração – 8,1 toneladas de embalagens vazias de defensivos agrícolas. Esse número corresponde a um crescimento de 2,3% em relação ao mesmo período de 2008, quando foram processadas 7,9 toneladas.
A indústria também colabora, patrocinando cursos, palestras e até disponibilizando linhas telefônicas para o disque-denúncia, com o combate à comercialização de agrotóxicos ilegais, em geral contrabandeados pelas fronteiras do sul do país ou fabricados ilegalmente. Em Rondonópolis (MT), a Polícia Federal prendeu no início do ano comerciantes que mantinham 3 toneladas de agrotóxicos ilegais numa casa. E, no Rio Grande do Sul, agentes fiscais do Departamento de Defesa Agropecuária da Secretaria de Agricultura, Pecuária, Pesca e Agronegócio (Seappa) apreenderam agrotóxicos ilegais que seriam utilizados nas lavouras de trigo e para tratamento de sementes em Ijuí.
Lista negra
Essas mesmas indústrias e as entidades que as representam, no entanto, resistem fortemente a qualquer tentativa de revisão da legislação ou da autorização da Anvisa para a fabricação e o comércio de alguns produtos, há muitos anos proibidos em outros países. O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag) nem quer falar sobre o assunto. Em 2008, a entidade ingressou com liminar para suspender a reavaliação de nove componentes presentes na fórmula de 99 agrotóxicos registrados no país. Segundo Meirelles, da Anvisa, o órgão conseguiu derrubar a medida e já está adiantado na revisão de estudos e dados científicos de 14 componentes de 235 agrotóxicos. Esses componentes já foram banidos ou sofreram severas restrições de uso em países da União Europeia e nos Estados Unidos, por representar risco à saúde humana. O Brasil é signatário de acordos multilaterais, e se esses produtos estão em listas de controle internacional já deveriam estar fora do mercado. Contudo, se o registro de medicamentos passa por avaliação sanitária a cada cinco anos, o de agrotóxicos tem prazo indeterminado, o que torna mais difícil sua proibição. Também há conflitos dissimulados entre pontos de vista de três ministérios: Saúde, Agricultura e Meio Ambiente. Estão liberados no Brasil, atualmente, 450 substâncias ou ingredientes ativos utilizados na formulação de 1,2 mil produtos.
A história do DDT é um dos mais evidentes exemplos da resistência da indústria à suspensão da fabricação e comercialização de um produto químico danoso à saúde. Somente em maio deste ano, 40 anos depois das primeiras restrições ao ingrediente ativo, o presidente da República sancionou a lei que proíbe o inseticida, além de determinar a incineração de todos os eventuais estoques de produtos que contenham DDT existentes no país.
Ninguém nega a necessidade do uso de pesticidas, sobretudo hoje em dia, quando é preciso alimentar os mais de 6 bilhões de pessoas que vivem no planeta. Contudo, espera-se que a ciência, a serviço da agricultura, formule ingredientes que não coloquem em risco nem o meio ambiente nem a saúde humana.
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