AS BASES DA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA*
Paulo Bonavides**
1. A
repolitização da legitimidade e a causa dos oprimidos.
Nos
Países do ocidente avançado os governantes e os publicistas em seus juízos
acerca do Terceiro Mundo confundem trégua com paz, armistício com capitulação,
descontentamentos sociais com ingovernabilidade, e despolitização, conceito que
falseiam, com legitimidade, conceito que menosprezam.
O
substrato ideológico na ordem material dos valores é subjacente a todas as
formas políticas, jurídicas e sociais regidas pelas Constituições dos Estados
periféricos.
E serve de
teor, do mesmo passo, à repolitização da legitimidade, bem como de escudo e
elemento de permanência espiritual para propugnar a causa da libertação dos
povos, inclinados ao fundamentalismo de sua cultura e à conservação de seus
valores.
Colocados
debaixo da ameaça de rápida dissolução por absorção na dependência, esses
valores reagem, e quando reagem pelos seus intérpretes e condutores, agitando os
quadrantes da sociedade, produzem mais cedo ou mais tarde as erupções do vulcão
político e rebatem a critica e a linguagem dos dominadores, que tem por órgão
elites traidoras e governos desnacionalizados.
Estes, não sabendo, nem podendo subjugar a crise, se escoram no
argumento da ingovernabilidade, e, por salvaguardar a segurança da ordem
interna, exigem mais sacrifícios ao povo e à nação.
Tais
sacrifícios se traduzem em tributos que esmagam e leis que oprimem; aquela
pletora de atos normativos vexatórios descreve e define, pois, a natureza do
regime e faz a republica parecer a mesma da máxima de Tácito: “corruptissima
respublica, plurimae leges”. Quanto mais leis, mais corrupta a república!
Dizia o historiador romano.
Esse estado que atesta a
decadência do ordenamento público procede em geral da incúria, do desmazelo, da
incapacidade, da malversação dos bens do erário, do desgoverno que nos paises
neocoloniais selou a aliança de liberais e globalizadores; aliança funesta ao
futuro da nação, ao bem da sociedade e à causa do povo, porque perpetua, numa
associação de interesses e privilégios, a supremacia da classe dominante.
2.
Democracia participativa, o grande caminho do futuro.
A
democracia participativa no Terceiro Mundo poderá fazer a transição da
obsolescência representativa dos parlamentos para a instantânea e eficaz e
legitimante aplicação dos mecanismos plebiscitários da Constituição, instaurando
assim, em definitivo, as bases democráticas do poder.
O
constitucionalismo da democracia participativa no universo dos países
periféricos há de arvorar, de necessidade, a bandeira da luta e da resistência
às dissoluções políticas de seu sistema de poder.
Suas inspirações de
contratualismo e soberania – programa revolucionário de três séculos de
modernidade no ocidente – parecem doravante estar sendo desconfessados pelos
descendentes ideológicos do velho liberalismo. Volvendo-se contra as raízes do
passado, professam estes a doutrina neoliberal da globalização, vendo na
soberania e no contrato social o pó da história, o grande obstáculo remanescente
à renovação institucional de cada nação daquele cosmo, debilitada por razões
que se nos afiguram maiormente de atraso social, político e econômico, sobre as
quais, em virtude das injustiças do capitalismo financeiro internacional, não
tem jurisdição os poderes de governo das nações oprimidas.
Demais disso, o constitucionalismo em países da periferia, como o
Brasil, se acha em dissidência com a democracia indireta, com a mecânica
representativa de governos corruptos, curvados a forças externas de pressão que
lhe retiram não raro a independência, ao mesmo passo que lhe rebaixam a estatura
de poder. Em suma, governos vinculados a assembléias nascidas de partidos
desagregados; cúmplices da ingovernabilidade, da desorganização política e do
estertor social do regime.
Cumpre assim volver aos princípios, aqueles inscritos nas cartas
políticas do século XVIII, quando inspiraram constituições e declarações de
direitos e mudaram a face do destino nas sociedades revolucionárias, onde
ficaram estampados por divisa em suas bandeiras de luta e de transformação
institucional.
Portanto, contrato social, direitos humanos, soberania, princípio da
autodeterminação dos povos são armas da liberdade, armas que se não enferrujam
nem envelhecem, tão coevas e prestantes para as nações deste continente quanto o
foram nos séculos XVIII e XIX para as nações do chamado Primeiro Mundo. Por isso
vamos conservá-las em nossas mãos, incorporadas na constitucionalidade das
instituições.
A democracia participativa é
o caminho do futuro. Há que formar no povo a consciência constitucional de suas
liberdades, de seus direitos fundamentais, de sua livre organização de poderes.
A democracia participativa executará essa tarefa. Aliás, tarefa urgentíssima nas
repúblicas do continente para dizermos não, ao desarmamento moral e espiritual
que nos aparelha o colonialismo dos banqueiros, inimigos da identidade desta
nação e deste povo.
3. O
pessimismo constitucional, um dos bloqueios à democracia
participativa.
Onde
cessam as razões do otimismo constitucional extraído da análise ao texto da
Constituição, principiam os óbices que até agora se têm levantado ao advento da
democracia participativa.
A
partir daí se passa, por obra de uma cautelosa transição, do otimismo
constitucional ao pessimismo constitucional.
Este, maiormente “de lege ferenda”, porquanto radica no
alcance e na expectativa de limites fáticos à ação dos legisladores
ordinários.
Membros de um poder constituído, podem eles assumir a função
constituinte de segundo grau, essencialmente jurídica. Por conseguinte, de
extensão reduzida e limitada, mas nem por isso privada da capacidade de emendar
e reformar com bom êxito a Constituição.
Nunca, porém, em momento algum, segundo lição de graves teoristas
constitucionais, podem eles se converter em poder constituinte de primeiro grau,
ou seja, aquele que promulga as Constituições e estabelece a natureza dos
regimes.
Tamanho poder de derrocar a Constituição não lhes é facultado, senão
por um golpe de Estado parlamentar.
O
pessimismo constitucional invade na travessia destas horas o ânimo do cidadão,
minado em suas esperanças constitucionais de ver rapidamente, como se faz mister
e é de desejar, uma reforma profunda, em busca de instituições políticas mais
sólidas, mais legítimas, mais perto do povo, mais afeiçoadas à igualdade
social.
Cabem tais instituições perfeitamente nos quadros de uma democracia
participativa, desde que se empreguem para tanto, e é o caso do Brasil, os
mecanismos e os canais da Constituição mesma, aqueles constantes já de cinco
artigos do texto Constitucional.
Entende, todavia quem segue a linha do pensamento pessimista, que os
corpos representativos jamais hão de abdicar, em proveito do povo legislador, a
feitura das leis, embora pudessem fazê-lo, qual postula aliás a teoria
constitucional da democracia participativa.
Têm
razão os pessimistas. Mas unicamente se não formos ao campo de batalha, e nós
estamos indo, para evitar a tragédia e entregar ao povo a soberania que os
perjuros da Constituição atraiçoaram e alienaram.
4. A
decadência das formas representativas.
Na escalada da
legitimidade constitucional, o século XIX foi o século do legislador, o século
XX o século do juiz e da justiça constitucional universalizada. Já o século XXI
está fadado a ser o século do cidadão governante, do cidadão povo, do cidadão
soberano, do cidadão sujeito de direito internacional, conforme já consta da
jurisprudência do direito das gentes. Ou ainda, do cidadão titular de direitos
fundamentais de todas as dimensões; século, por fim, que há-de de presenciar nos
ordenamentos políticos o ocaso do atual modelo de representação e de partidos. É
o fim que aguarda as formas representativas decadentes.
Gafados de corrupção, os legisladores submissos ao Executivo e a ele
acorrentados, vêem a legitimidade lhe desertar as casas
legislativas.
A
demissão em desempenhar prerrogativas os faz resignatários de poderes
constitucionais, até há pouco garantia e penhor de sua dignidade participativa
na elaboração da vontade governante.
Tal
acontece sobretudo por obra das medidas provisórias, instrumentos legislativos
de exceção, que sustentam a governabilidade da ditadura
constitucional.
A medida provisória na
funesta experiência brasileira significa a constitucionalização do arbítrio.
Tudo a expensas do poder legislativo mutilado por aquela “capitis diminutio” que
instituto tão autoritário e desvirtuado lhe trouxe.
5.
Só a observância da Constituição pode conduzir à democracia
participativa.
A
Constituição legislada em 1988 prescreve duas formas capitais de exercício do
poder: a forma representativa e a forma direta. Ambas coirmanadas nas bases do
sistema.
Mas
acontece que na ordem da positividade constitucional, não há cláusula de rigidez
absoluta que determine ou decrete embargos a uma inversão democrática daquela
inferioridade a que ficou sujeita a expressão direta da vontade popular perante
os mecanismos representativos. A Constituição não faz, em termos absolutos, o
órgão intermediário da soberania, que é a representação parlamentar, prevalecer
ao órgão primário do poder, que é o povo.
Deste emana, em rigor, toda a legitimidade de quem governa. Contudo,
essa legitimidade democrática da polis contemporânea só parcialmente embebe as
instituições de governo.
A
presença direta do povo governante permanece, portanto, rudimentar, inferior,
indefinida, mal delineada, pouco desenvolvida, um tanto programática, atropelada
e subtraída em sua eficácia; por conseguinte, reflexo de uma realidade que
melhor guardara o espírito da Constituição se porventura concretizasse com mais
energia a força participativa do povo, qual flui pura e límpida do parágrafo
único do art. 1º da Constituição.
Em
verdade, o poder que tem o povo de governar diretamente se acha algemado por
dispositivo do próprio texto constitucional, que a hermenêutica cega de alguns
intérpretes faz colidir e entrar em contradição com a base principiológica do
referido parágrafo único do art. 1º da Constituição. Ora, é essa base que compõe
nos países periféricos a essência e o substrato contemporâneo da legitimidade de
suas Constituições.
O
falseamento hermenêutico colocou, portanto, de maneira inversa, o exercício
direto do poder popular, em sua dimensão soberana, debaixo da servidão, do
desinteresse, da indiferença e da deslembrança do corpo
representativo.Obviamente, o empenho deste é perpetuar uma supremacia que a
decomposição ética do sistema, designadamente da classe política, faz todavia
insustentável.
Como
dissemos há pouco, a preponderância representativa, do ponto de vista
constitucional, não foi posta em sentido extremo, a saber, não tem profundidade
nem alcance normativo de rigidez intangível. Isto é indubitavelmente positivo
por fazer lícito a trasladação da hegemonia representativa para a hegemonia
popular, quando se sabe que é o povo depositário de um teor de legitimidade bem
superior, porquanto mais estreme, mais denso, mais alto, mais consistente,
sendo, como se reconhece, o titular do princípio supremo que rege a ordem
jurídica do sistema constitucional: o princípio da soberania
popular.
A
alteração que se fará no modelo de exercício do poder, para este passar do
predomínio representativo ao predomínio popular, ocorrerá por via constituinte
ordinária, pelo chamado poder constituinte derivado ou poder constituinte de
segundo grau, que o Direito e a soberania limitam em seu respectivo
alcance.
Dotado, entre nós, da competência de emendar a Constituição nos
termos do art. 60, possui ele, a nosso ver, capacidade para estabelecer a
mudança profunda, legitimante e constitucional que se aguarda da consciência
republicana ainda jacente em alguns membros das duas Casas do Congresso, se lhes
restar força e liderança em reverter o quadro de desagregação moral por que
passa o ramo legislativo do poder.
Em
razão da grave crise que o modelo representativo vigente atravessa, a
recuperação da legitimidade do sistema requer uma imperiosa reforma, pela qual a
Nação ora clama, para dar estabilidade às bases do
ordenamento.
Preconiza-se, por conseguinte, mudança que faça o pêndulo do regime
inclinar-se irresistivelmente para o campo duma participação popular mais
legítima, mais democrática, mais soberana.
Se
tal não acontecer, a crise sem dúvida vai perdurar; talvez até
recrudescer.
Perdida, por inteiro, a legitimidade, segue-se a ruína do regime, sua
desintegração fatal, impossível de atalhar por meios paliativos que
ordinariamente se empregam para debelar crises, como soam ser aqueles a que os
governos fracos, de autoridade combalida e contestada, costumam
recorrer.
Mas
primeiro que se decrete nos juízos de opinião prognóstico tão funesto, há como
prevenir a catástrofe mediante o estabelecimento, na ordem constitucional,
conforme temos sempre asseverado, de uma democracia participativa. Quer dizer, a
democracia em sua ampla extensão regeneradora, com capacidade para erguer e
restaurar o primado e prestígio da Constituição.
A
Constituição da democracia participativa não gera monstros semelhantes às
medidas provisórias da democracia representativa.
Ela
é eficazmente a coluna e a vértebra de toda a organização da soberania, de toda
a composição do sistema. Mas enquanto Constituição aberta do povo-cidadão com o
poder de exprimir a vontade suprema do ordenamento. Vontade justa, legítima e
inviolável, se fiel à razão que inspirou o contrato social.
A
Constituição do povo governante há de ser sempre aberta, pluralista, artefato do
pós-positivismo, inspirada de valores, flexível à metamorfoses sociais,
evolutivas, permeáveis à incorporação de normas tuteladas por princípios; em
rigor, Constituição que nos termos teóricos de seu texto consagra a súmula da
vocação popular para a liberdade e o Direito. O Direito compreendido aqui como a
realização da justiça em todos os estamentos da sociedade.
Enfim, Lei Maior derivada de uma geração constituinte que tinha, de
consciência, após décadas de autoritarismo e autocracia, o indeclinável dever de
levantar sobre esteios éticos, para resgate da Nação oprimida, o edifício de
suas instituições reformadas, recompondo assim por obra do Direito os
fundamentos do regime e do estabelecimento do poder.
6. O
humanismo da Constituição e a força dos princípios.
As
bases morais do humanismo constitucional da Carta de 1988 acham-se cifradas num
princípio pendular, que é a chave da abóbada dessa catedral do
constitucionalismo brasileiro: o princípio da dignidade da pessoa
humana.
Esse
princípio está para o constitucionalismo do Estado Social, nesta fase do
pós-positivismo, assim como o princípio da separação de poderes esteve para o
constitucionalismo do Estado liberal na época clássica do positivismo
legalista.
Princípio novo nos anais do constitucionalismo, perpassa ele a carta
contemporânea dos direitos fundamentais com o dogma consagrador da alforria
moral do ser humano, em idade de incertezas geradas pelas convulsões da
globalização.
Princípio rector de todas as normas compendiadas na letra da Constituição, ele
as faz legítimas igualmente por sua procedência, por serem emanações livres de
um poder soberano que na hierarquia contemporânea dos poderes figura como o mais
alto: o poder do povo, raiz de justiça, sustentáculo da liberdade, penhor de
temperança nas instituições.A dignidade da pessoa humana é elemento eterno da
ética que legitima a soberania popular.
Onde
há ética há valor. Logo a neutralidade do Direito Constitucional inexiste; se
existisse, fora a pior das ideologias, o subterfúgio da hipocrisia política
mascarando a decadência dos sistemas injustos, antiéticos, volvidos para a
desigualdade e o privilégio.
A
ética, os valores e os princípios fazem, em verdade, a dignidade constitucional
da pessoa humana.
Por
conseguinte, não cabe neutralidade em matéria constitucional, em suas matrizes,
em seus fundamentos, em suas raízes. Tornamos assim a afirmar que é impossível
extinguir ou ocultar a natureza e a dimensão política ínsita àquele
Direito.
Em
rigor, o Direito Constitucional assenta, por completo, sobre princípios; esses
princípios guiam e ditam e legitimam as diretrizes que os governos, os sistemas,
as organizações do poder costumam adotar, em busca do bem comum e da saúde e
força do regime.
No
cosmo social das complexidades contemporâneas, porém, as distâncias se encurtam,
a freqüência dos saltos qualitativos, tecnológicos e científicos mudam
rapidamente a feição das coisas, conduzindo a espécie humana às oscilações do
porvir duvidoso. Com isso os efeitos das transformações da vida humana se tornam
de todo imprevisíveis, e pedem a renovação adaptativa das disciplinas normativas
da sociedade. De tal sorte que se postula em todas as províncias do Direito um
novo sentido na compreensão dos ordenamentos jurídicos. Sentido que se alcança
por vias metodológicas de interpretação absolutamente afastadas daquelas que
derivam da hermenêutica de Savigny e dos clássicos de sua
escola.
7. A
importância contemporânea da Nova Hermenêutica e o primado da
ética.
As
leis, portanto, se sucedem em escala vertiginosa, invadem códigos e
constituições, inundam o ordenamento jurídico, fazem o desespero da sociedade,
tornando não raro vexatória, instável, flexível, contraditória e caótica a
matéria do direito.
Nesse estado de insegurança geral não inspiram fé nem confiança os
órgãos da civitas donde emana a vontade governativa, porquanto navegam
num oceano de casuísmos e determinações legais improvisadas.
Demais disso, tais leis, sobre serem múltiplas, copiosas,
inumeráveis, conflitantes e inadequadas, se apresentam a um tempo frágeis,
frouxas, inconsistentes, particularizantes, perecíveis.
Buscam fixar-se sobre uma realidade complexa que as derroga a cada
passo. De tal maneira que o jurista, o legislador, o gestor da coisa pública, a
não serem iluminados de luzes principiológicas e de fidelidade à Carta, perderão
logo o rumo da navegação.
Em
mares tão procelosos a única bússola que verdadeiramente pode funcionar e guiar
o cientista da Constituição é a Nova Hermenêutica: quando parte de princípios e
não de regras, quando se prende à materialidade do direito e não à extrema
rigidez dos formalismos, quando não esteriliza na imobilidade a criação do
direito, quando remete a lei à unidade do sistema.
Por
conseguinte, a Nova Hermenêutica abre horizontes a novas fórmulas e soluções
jurídicas que aparelham o progresso, a evolução e a reforma da sociedade e do
governo.
Sem
norte fica pois a Ciência do Direito entre aqueles que, movidos da cegueira
positivista, menosprezam valores e princípios, por conseqüência, exaurem o
fundamento ético que disciplina os comportamentos numa sociedade volvida para a
promoção do bem comum.
Sem
ética não há dignidade da pessoa humana, sem dignidade da pessoa humana não há
sistema legítimo, sem sistema legítimo em vão se busca estabelecer e concretizar
no corpo jurídico da sociedade as distintas dimensões de direitos fundamentais
atribuídos a seus titulares.
A
carência da ética faz assim o governo instrumento de poder; jamais braço
executivo da justiça, das garantias individuais intangíveis, do progresso
social, dos imperativos humanos de solidariedade. Destes se compõe o cimento
moral de todas as instituições assentadas sobre o principio acima referido, a
saber, principio de dignidade do homem como pessoa. Para ele convergem quantos
valores e fins a Constituição intenta introduzir em sua ordem
jurídica.
8.
Formas de governo e crise de legitimidade.
Há,
enfim, meus Senhores, na teoria constitucional do Estado moderno pelo menos seis
formas usuais e clássicas de governo e organização política: a monárquica, a
republicana, a parlamentar, a presidencial, a federativa e a
unitária.
Destas, três se acham presentes à Constituição que ora rege o Brasil:
a forma republicana, a forma presidencial e a forma
federativa.
As
três porém, conjuntamente, padecem o açoite da crise constituinte que primeiro
minou as bases do Império, a seguir, contaminou a República até chegar aos
nossos dias, potencialmente, com a força sísmica de um terremoto; mais cedo ou
mais tarde ela poderá abalar as instituições e condená-las, irremediavelmente, à
queda ou à dissolução.
A
crise constituinte é a doença da legitimidade de um poder.
No
Brasil todos os poderes, desde o Império, passando por dois reinados e uma
regência, até a Republica, compreendendo, ao curso de 116 anos, cinco repúblicas
constitucionais e algumas ditaduras, se apresentam já enfermos; alguns prestes a
receberem a extrema unção, outros porém conservando ainda a esperança da
convalescença e da cura.
Não
há, por conseguinte, legitimidade constitucional plena no Terceiro Mundo, a não
ser que se faça a revolução. Mas entenda-se: revolução sem sangue, revolução que
reforme Poderes, que consagre idéias e princípios, que entre nos códigos e nas
Constituições e proclame a força vinculante dos valores ou exalçe a ideologia da
liberdade concretizada. Fora, portanto, de esferas meramente abstratas e
programáticas.
A
revolução sempre constrói uma realidade diferente. No Brasil falta ao povo,
atraiçoado de elites falsamente representativas, recobrar a razão libertária de
seu destino.
No
entanto, já se forma aqui a consciência de alforria que faz o homem-cidadão
sujeito e objeto, titular e destinatário de todas as emanações normativas do
poder.
Com
determinação e fervor de ânimo, este homem, célula da democracia, deposita sobre
a revolução reformista a esperança de estabelecer em matéria política a
idoneidade cívica dos partidos, a construção moral de sua legitimidade, a
mudança profunda nas bases do sistema com a transição da supremacia
representativa para o patamar superior do novo ordenamento
democrático-participativo, que é a vocação do século XXI.
Mas
por ponto de partida para tamanha reforma, silenciosa, vertical e significativa,
manda o bom senso político que se faça a introdução incontinenti do mandato
imperativo.
Será
esse, por sem dúvida, o primeiro grande passo com que o País há-de franquear as
portas à democracia participativa. Terá início assim a resoluta caminhada de
reconciliação do Estado com a sociedade, da cidadania com as agremiações
partidárias, do povo com o governo.
Os
caminhos do futuro passam, portanto, irremissivelmente, pela democracia
participativa.
Minhas Senhoras, meus Senhores:
Nestes momentos finais de minha oração aos magistrados brasileiros,
quero, de ânimo levantado e fé inabalável, saudar a vossa firmeza e determinação
em manter indissolúveis os laços de fidelidade à causa da democracia, do
direito, da justiça e da liberdade, contra as forças reacionárias e as elites
decadentes que selaram a aliança da recolonização com o retrocesso
social.
Não
é à toa que a vossa associação Juizes para a Democracia celebra este evento em
solo pernambucano.
Esta
terra sacraliza a memória dos bravos que nos Guararapes expulsaram o invasor
holandês. É a mesma pátria dos heróis e mártires da Confederação do Equador que
repudiaram a Constituição outorgada pelo Imperador.
Fiéis ao contrato social, já naquela época distante em que a
nacionalidade emergia, passaram com o seu sangue e o sacrifício de suas vidas a
certidão de um protesto contra aquilo que temos sido até hoje: o país do
carnaval, o eterno país do futuro, o país da corrupção e da ingovernabilidade, o
país colônia de banqueiros e de agiotas internacionais; enfim, o país das três
Comissões Parlamentares de Inquérito impotentes para varrer a lama da
administração pública e pôr termo à decomposição dos partidos, das casas
legislativas, das antecâmaras presidenciais, que sem representatividade legislam
com ofensa à Constituição e ao interesse nacional.
Diante de vossos olhos atônitos e perplexos, o Brasil se transformou
na grande Chicago do continente, a antiga Chicago da Lei Sêca, onde, por
derradeiro, as máfias partidárias da república de Ali Babá fazem entre si a
guerra das quadrilhas. E o fazem unicamente para alcançar o domínio exclusivo e
o poder absoluto sobre a coisa pública no mais vilipendioso assalto aos cofres
da nação nunca visto nos anais do Império e da República.
Viestes, por conseguinte, ao
Recife, dizer o vosso não ao confisco da riqueza nacional, às abdicações da
soberania, às traições desnacionalizadoras do passado e do presente.
Viestes, sim, dizer que somos o outro Brasil e acender a esperança
incombustível numa sociedade mais justa, mais livre, mais fraterna, mais
democrática, mais humana.
Muito obrigado,
Paulo Bonavides
Resumo: 1. A Repolitização da Legitimidade e a Causa dos Oprimidos.
2. A Democracia Participativa, o grande Caminho do Futuro. 3. O Pessimismo
Constitucional, um dos Bloqueios à Democracia Participativa. A decadência das
Formas Representativas. 5. Só a observância da Constituição pode conduzir à
Democracia Participativa. 6. O Humanismo da Constituição e a Força dos
Princípios. 7. A Importância contemporânea da Nova Hermenêutica e o Primado da
Ética. 8. Formas de governo e crise de legitimidade.
* Palestra proferida por Paulo Bonavides
no I Encontro Nacional da Associação Juizes para a Demcoracia em Recife/PE, no
dia 01/12/2005 cujo tema era “Por um direito constitucional de lutas e
resistência”, em mesa presidida pelo cientista político e juiz de direito João
Batista Damasceno.
**
CURRICULUM ABREVIADO de PAULO BONAVIDES: É
Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa; Professor Emérito da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Ceará; Professor Visitante nas
Universidades de Colonia (1982), Tenessee (1984) e Coimbra (1989); Lente no
Seminário Românico da Universidade de Heidelberg (1952-1953); Membro
Correspondente da Academia de Ciências da Renânia do Norte-Westfália (Alemanha);
Membro Correspondente do "Instituto de Derecho Constitucional y Político", da
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Nacional de La Plata,
na Argentina; Membro Correspondente do Grande Colégio de Doutores da Catalunha
(Espanha); Membro do Comitê de Iniciativa que fundou a Associação Internacional
de Direito Constitucional (Belgrado); Membro da "Association Internationale de
Science Politique" (França), da "Internationale Vereinigung fuer Rechts-und
Sozialphilosophie" (Wiesbaden, Alemanha), da Academia Brasileira de Letras
Jurídicas, do Instituto Ibero-Americano de Direito Constitucional, da Ordem dos
Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros; "Nieman Fellow
Associate" da Universidade de Harvard (1944-1945); Prêmio Carlos de Laet da
Academia Brasileira de Letras (1948), Prêmio Medalha Rui Barbosa da Ordem dos
Advogados do Brasil (1996), Prêmio Medalha Texeira de Freitas do Instituto dos
Advogados Brasileiros (1999); Membro Correspondente da "Asociación Argentina de
Derecho Constitucional", Membro do Conselho Assessor do "Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales" de Madrid, Presidente Emérito do Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), Presidente de Honra do Instituto de
Defesa das Instituições Democráticas (IDID), Professor Emérito da Universidade
Metropolitana de Santos (SP), Fundador e Diretor da Revista Latino-Americana de
Estados Constitucionais (2003); Medalha Texeira de Freitas do Tribunal Federal
da 5ª Região e Medalha Epitácio Pessoa da Assembléia Estadual da Paraíba. Dentre
suas obras cabe destacar: Ciência Política (13ª tiragem da 10ª ed. 2004) -
Teoria do Estado (4ª ed. 2003) - Reflexões - Política e Direito (3ª ed. 1998) -
A Constituição Aberta, (2ª ed. 1996) - Do Estado Liberal ao Estado Social (7ª
ed., 2ª tiragem 2004) - Política e Constituição: os Caminhos da Democracia
(1985) - Constituinte e Constituição (2ª ed. 1987) - História Constitucional do
Brasil (4ª ed. OAB 2003) - Do País Constitucional ao País Neocolonial (2ª ed.
2001) - Teoria Constitucional da Democracia Participativa (2ª ed. 2003) - Textos
Políticos da História do Brasil (3ª ed. Senado Federal, 2003) - Curso de Direito
Constitucional (17ª ed. 2005) e "Os Poderes Desarmados"
(2002).
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