“Será necessária uma macroeconomia para sustentabilidade que, além de reconhecer os sérios limites naturais à expansão das atividades econômicas, rompa com a lógica social do consumismo.” Em termos teóricos, esse parece ser o desafio maior a ser enfrentado pela economia e pela sociedade na entrada desse novo século para encontrar alternativas à crise civilizacional com a qual nos defrontamos. A frase do economista José Eli da Veiga, professor da USP e estudioso há três décadas do desenvolvimento sustentável, resume de forma genial os limites encontrados por todas as correntes da economia.
No artigo em questão, José Eli da Veiga pontua as três posições encontradas entre os economistas no tocante à sustentabilidade – a convencional, a ecológica e a busca de uma terceira via – e de como todas elas “tentam evitar o dilema do crescimento”. Mas seu debate, sustenta o economista, “exigirá rompimento mental com uma macroeconomia inteiramente centrada no ininterrupto aumento do consumo, em vez de um keynesianismo pretensamente esverdeado por propostas de ecoeficiência. Algo que jamais poderá deter o aumento da pressão sobre os recursos naturais”.
A questão fulcral diz respeito ao esgotamento do modelo de desenvolvimento criado e incrementado na sociedade industrial baseado em uma visão linear, progressiva, infinita e redutora de desenvolvimento, e que tem no consumo desenfreado a sua mola propulsora. Há uma crença no crescimento econômico e sua linearidade. A crise ambiental e a mudança climática estão aí para indicar o fracasso dessa perspectiva.
Esse é o background comum tanto ao liberalismo econômico como ao marxismo, o que embaralha, sob esta perspectiva, as buscas de soluções. Porque ambos são resultantes da modernidade. Bebem na fonte da racionalidade técnico-instrumental. A modernidade é marcada pela ideia de progresso alcançado pelo trabalho. Marxismo e liberalismo repousam sobre a noção de um progresso infinito. Subjaz a crença de que os recursos naturais seriam sempre abundantes, infinitos. Não haveria porque se preocupar com a possibilidade de que algum dia haveria falta dos recursos naturais (petróleo, carvão, aço, água, florestas, energia)… para alimentar a “máquina” do progresso humano.
Essa visão de sociedade engendrada pela modernidade e constitutiva à teoria marxiana – compreensível ao momento em que Marx escreve, o advento da Revolução Industrial – precisa ser complexificada. Aqui reside, por exemplo, a dificuldade da esquerda brasileira. Manifesta uma dificuldade enorme de incorporar novos temas – como a crise ecológica – porque fica presa a uma leitura empobrecedora do marxismo. Mas, isso a despeito da matriz comum economicista de desenvolvimento que ambos alimentam.
Se começa a amadurecer uma consciência em torno da crise, não há ainda, uma “macroeconomia”, como escreve Eli da Veiga, capaz de dar conta dos novos desafios. Além disso, prossegue ele, ainda que os economistas ecológicos tenham obtido “algum êxito na crítica ao pensamento econômico convencional”, eles “têm a mesmíssima ética voltada a uma suposta maximização do bem-estar da população atual, sem quaisquer considerações sobre limites ecológicos e sobre o bem-estar de gerações futuras. Esse é o denominador comum a todas as escolas, das mais ortodoxas às mais heterodoxas”.
José Eli da Veiga conclui seu instigante artigo apontando para a dificuldade de se atacar a questão do consumo: “mesmo a crítica da economia ecológica ao cerne do pensamento convencional só foi até agora assimilada por uma ínfima minoria. E uma das razões está justamente nessa incipiência da formulação de alternativa que supere o que há de mais comum nas várias teorias macroeconômicas em voga”.
Subjacente à visão moderna de desenvolvimento está uma concepção estreita, reducionista, monetarista, economicista de desenvolvimento, no qual não cabe a perspectiva da sustentabilidade. Em termos econômicos, essa discussão rebate na ideia de produto interno bruto (PIB) desenvolvido na metade do século passado e nunca revista. No novo cenário, a noção de PIB mostra-se redutora e economicista, questionando a concepção de riqueza vigente na modernidade.
Seus limites começaram a ser percebidos e denunciados por um grupo cada vez maior de ambientalistas e estudiosos, entre eles economistas. E, segundo diversas vozes, sua revisão se faz necessária, ainda que não seja a condição exclusiva. Como escreve o economista Ladislau Dowbor, professor da PUC de São Paulo, essas pessoas e esses técnicos estavam “cansados de ver o comportamento econômico ser calculado sem levar em conta – ou muito parcialmente – os interesses da população e a sustentabilidade ambiental”. Seguem algumas razões.
Para Eli da Veiga, “o PIB envolve capital físico construído e também humano. No que tange os recursos naturais, o PIB simplesmente não contempla a questão”. Dowbor também destaca esse aspecto, ao afirmar que o PIB não leva “em conta a redução dos estoques de bens naturais do planeta”. E destaca que “sempre devemos levar em conta que estamos reduzindo o estoque de bens naturais que entregaremos aos nossos filhos”. E as consequências desse “esquecimento” dos passivos ambientais são enormes. “Não levar em conta o consumo de bens não renováveis que estamos dilapidando deforma radicalmente a organização das nossas prioridades. Em termos técnicos, é uma contabilidade grosseiramente errada”, arremata Dowbor.
“O modelo que estamos vivendo hoje, a chamada sociedade de consumo é um esquema suicida e sem futuro. Nós estamos consumindo o planeta.” O alerta é do ambientalista José Antonio Lutzenberger, morto em maio de 2002. A lembrança dessas palavras quer ser uma homenagem a este importante ambientalista brasileiro. E diz mais: “Temos de nos dar conta de que o pensamento econômico que predomina hoje é suicida. Não podemos continuar olhando o planeta como um almoxarifado gratuito, de fundos infinitos”, disse em entrevista dada em 2000 e que se encontra reproduzida no n. 18 da Revista IHU On-Line, de 20-05-2002.
“O sistema não enxerga a bola de neve que consome o planeta porque a medida de crescimento é o Produto Interno Bruto, o PIB”, diz Lutzenberger, para destacar que, nesta perspectiva, até desastre ambiental pode significar progresso. E dá um exemplo: “Veja o PIB brasileiro. Somamos as divisas que ganhamos na exportação de alumínio, aço e ferro. Tudo bem. Mas onde está descontado aquele grande buraco em Carajás, os mais de 100 mil quilômetros quadrados de floresta destruída ao longo da Ferrovia Carajás-São Luiz do Maranhão, os mais de 400 mil quilômetros quadrados de florestas de cerrado que já foram destruídas para fazer carvão vegetal?” Há outros mais recentes, como destacam Dowbor e outros.
José Eli da Veiga destaca que, além do passivo ambiental, outros aspectos ficam excluídos do PIB, por exemplo, “o trabalho doméstico”, ao qual poderíamos acrescentar todos os trabalhos relacionais e imateriais. Mas também “o tempo das pessoas”, como alerta Dowbor. Por outro lado, desastres, poluição, acidentes, não prevenção na área da saúde contribuem para o progresso da economia. Como entender isso? “Porque o PIB calcula o volume de atividades econômicas, e não se são úteis ou nocivas”, diz Dowbor. Ou, no que dá no mesmo, “o PIB não mede resultados, mede o fluxo dos meios.” Isso é possível porque a economia moderna baniu a dimensão ética.
A maneira de contabilizar do PIB em vigor força a crescente mercantilização de tudo, aspecto para o qual Dowbor chama a atenção. A redução do acesso a bens gratuitos, os pedágios, as patentes (que restringem o livre acesso aos conhecimentos) são formas de aumentar o PIB. Vige a ideia de que os bens e serviços só são riquezas na medida em que são integradas ao mercado ou privatizadas. A extensão da ideia de mercadoria corre em paralelo com o aumento do PIB de um país.
Por fim, o PIB é extremamente redutor porque não considera os custos sociais, nem os custos ambientais, como já vimos. Como afirma André Gorz, em entrevista publicada em Cadernos IHU Ideias, n. 31, “os economistas, os governos, os homens de negócio reclamam pelo crescimento econômico em si, sem jamais definir a finalidade. O conteúdo do crescimento não interessa aos que decidem. O que lhes interessa é o aumento do PIB, ou seja, o aumento da quantidade de dinheiro trocado, da quantidade de mercadorias compradas e vendidas no decorrer de um ano, quaisquer que sejam as mercadorias”. E, continua Gorz: “Nada garante que o crescimento do PIB aumente a disponibilidade de produtos que a população necessita. De fato, este crescimento responde, em primeiro lugar, a uma necessidade do capital e não às necessidades da população. Ele cria muitas, vezes mais pobres e mais pobreza, ele, com freqüência, traz rendimento a minoria em detrimento da maioria, ele deteriora a qualidade da vida e do ambiente em vez de melhorá-la” (p. 4). E conclui dizendo que “o PIB não conhece e não mede as riquezas, a não ser que elas tenham a forma de mercadorias” (p. 5).
Mas é preciso advertir que “as novas métricas para medir o crescimento da economia não bastam, embora sejam bem-vindas em um processo de transição. Para a ecoeconomia, é preciso parar de crescer em níveis exponenciais e reproduzir – ou ‘biomimetizar’ – os ciclos da natureza: para ser sustentável, a economia deve caminhar para ser cada vez mais parecida com os processos naturais”.
Não é de hoje o alerta de que a mudança climática, seguramente provocada pela intervenção da ação humana, terá inevitavelmente um custo econômico, que irá suplantar as vantagens econômicas obtidas em base ao modelo ainda vigente. O chamado “Relatório Stern”, produzido em 2006 pelo economista inglês e ex-Diretor do Banco Mundial Nicholas Stern, advertiu que os descalabros ambientais poderão custar anualmente entre 5% e 20% do PIB mundial, dependendo dos cenários. Isso significaria prejuízos econômicos em torno de 7 trilhões de dólares. Significaria mais ou menos tudo o que foi investido no mundo em praticamente um ano para estancar os efeitos da crise financeira e econômica.
Na semana passada, a ONG internacional WWW estimou que o colapso ambiental poderá custar ao mundo 4,5 trilhões de dólares por ano em reparações. Caso a mudança climática se confirmar, o mundo poderá entrar em recessão e perder grande parte da vida e de sua população humana, alerta James Lovelock, por sua vez. portanto, um desenvolvimento inteligente seria aquele capaz de se antecipar a tudo isso.
Dizia Lutzenberger: “O simples dogma básico do pensamento predominante, que diz que uma economia tem de crescer sempre, já é um absurdo. Nada pode crescer sempre, muito menos num espaço limitado. Eu gostaria de saber como vão aumentar o território, as florestas, os lagos, os rios, os oceanos, a atmosfera”.
Levanta-se, a bem da verdade, a necessidade da migração do pólo da produção para o do consumo, como condição para o futuro da humanidade e do Planeta. De fato, todas as preocupações voltadas, por exemplo, para o desenvolvimento de tecnologias mais eficientes em termos de energia e menos poluentes – ainda que necessárias –, assentam, em última instância sobre a perspectiva de que nesse caso podemos continuar a construir carros no futuro como se está fazendo até agora, com a diferença de que poluirão menos. Mas, as cidades suportarão esse movimento crescente de veículos, a sua produção se dará ex nihilo, isto é, sem continuar a intervenção sobre a natureza?
Uma mudança dos hábitos de consumir se torna imprescindível. E essa mudança não pode ser postergada, esperando-se um momento ideal para isso. O que Irene A. Quesnot diz num contexto de Estados Unidos, vale para todos: “a recessão, eu acredito, pode ser uma oportunidade para nos tornarmos mais fiéis à sustentabilidade do que ao consumo, e mais preocupados com o que podemos fazer pela saúde da Terra. Uma nação que realize sua interconexão com o resto da vida no planeta pode viver uma realidade mais compassiva e justa. Se adotarmos por vontade própria esse estilo de vida, não o vendo como um declínio no status econômico, então progrediremos ao criar uma América mais sustentável”. Mas isso exige, diz Quesnot, uma boa dose de “corajosa imaginação ética”.
O retorno da ética ao consumo implica em migrar inversamente da lógica do “quanto mais, melhor”, que na prática representa o consumo desenfreado, à lógica do “isso me basta”, da sobriedade, proposta por Gorz em outro momento. Isso, por sua vez, implica uma mudança antropológica do ato de consumir.
Portanto, a lógica econômica vigente nos últimos 200 ou 250 anos, especialmente, é redutora. O progresso é sinônimo de desenvolvimento econômico; o desenvolvimento econômico é sinônimo de crescimento econômico; o crescimento econômico é medido pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB), que por sua vez, pode ser verificado pelo consumo que engendra. Essa concepção de desenvolvimento linear não interage com as pessoas e com o meio ambiente.
Afunilando esta reflexão para a realidade brasileira, verificamos que o predomínio desta lógica economicista se aplica a diversas das questões já trabalhadas em conjunturas anteriores. Queremos circunscrever a nossa análise sobre algumas delas: a Amazônia, a questão indígena e os transgênicos, lendo essas manifestações à luz da reflexão feita acima. Sabemos que são temas conflitivos, onde as resistências, feitas em base a outro modelo de desenvolvimento, estão presentes.
A hegemonia do modelo desenvolvimentista – que pervade o governo, o empresariado, a sociedade e também, majoritariamente, a esquerda e os movimentos sociais – se traduz em práticas responsáveis pelo desmatamento da floresta Amazônica e na construção de hidrelétricas no seu coração, na expansão da monocultura do eucalipto, da cana-de-açúcar, da soja, na difusão dos transgênicos, na retomada de fontes não renováveis de energia, na ideia de que as terras indígenas são um atraso para o país.
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